Patricia Leal Di Nizo (Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas)
Eje Temático Discurso Político
Este estudo parte de reflexões em torno de uma possível modificação na identificação dos sujeitos com a ideologia, visando compreender e analisar o funcionamento do discurso cínico na contemporaneidade. Definido por Peter Sloterdijk (Crítica da razão cínica) como “falsa consciência esclarecida”, o cinismo é uma espécie de distorção de uma ideia no momento mesmo de sua aplicação. Conforme explica Safatle (Cinismo e falência da crítica), trata-se de um funcionamento “que parece seguir sistemas de normas e valores que se invertem no momento mesmo de sua aplicação, sistemas em que lei e transgressão são enunciadas, ao mesmo tempo, como imperativos”. Lançando mão dos conceitos analíticos de interdiscurso, memória e acontecimento (Pêcheux), examinaremos os embates kynikos-cínicos, ou seja, o cinismo do oprimido contra o cinismo do opressor, buscando descrever e analisar, na relação entre língua e discursividade, a capacidade do sujeito de jogar com o sentido, provocando distorções, desvios, rupturas e deslocamentos em materialidades carregadas de historicidade. Nosso recorte buscará estabelecer um contraste entre o kynismos do Petit Journal – programa transmitido no Canal + francês, misturando informação, humor e entretenimento através de uma prática de desmontagem e montagem da notícia, aliada a sketches e crônicas satíricas, parodiando assuntos e personalidades em evidência – e o cinismo do Front National – partido de extrema direita francês, liderado por Marine Le Pen. Em 19 de setembro de 2013, o programa, manifestamente do lado do oprimido, denunciou a conduta do opressor ao revelar que algumas paisagens utilizadas para enaltecer a beleza da França presentes no vídeo promocional do partido, intitulado La France est belle. Protégeons-la !, eram, de fato, originárias de outros países. Na realidade, por meio de um processo de decupagem, o Petit Journal intercalou, aos comentários irônicos do apresentador, as falsas paisagens francesas, combinadas ao título do vídeo exaltando a beleza da França e aos gritos dos militantes – On est chez nous ! –, os quais assistiam entusiasmados ao espetáculo proporcionado pelo partido. Da mesma forma que ocorreu na França, no início da década de 1980 (cf. o funcionamento discursivo do enunciado on a gagné inserido no espaço do acontecimento político de 10 de maio de 1981, em virtude da vitória da esquerda na França com a eleição de François Mitterrand à presidência da República, analisado por Michel Pêcheux em O discurso: estrutura ou acontecimento), os embates politico-ideológicos em torno do enunciado on est chez nous, difundido pelo Front National, já haviam começado na França bem antes da exposição do vídeo exibido aos militantes do partido (cf. os cartazes produzidos pelo partido e as diversas manifestações realizadas pelos militantes antes do acontecimento de setembro de 2013). Cantado com o mesmo ritmo de on a gagné (on-a-ga-gné), on est chez nous (on-est-chez-nous) constitui a retomada direta, no espaço do acontecimento político, do grito coletivo dos torcedores de uma partida esportiva cuja equipe acaba de ganhar. Ou seja, depois de ter sido repetido intensamente na Praça da Bastilha após a vitória de François Mitterrand nas eleições presidenciais, o ritmo do grito de guerra do campo esportivo on a gagné invadiu novamente o espaço político, porém, desta vez, não mais do ponto de vista da esquerda, mas sim da extrema-direita francesa. Através de sua prática de desmontagem e montagem e lançando mão de seu discurso com características irônicas e sarcásticas, próprias o funcionamento kynikos, a equipe do Petit Journal mesclou o sentido pré-figurado do dizer on est chez nous às imagens extraídas do vídeo forjado pelo Front National, provocando, assim, um confronto discursivo envolvendo a disputa do sentido em torno desse enunciado. Palavras chave: Discurso cínico. Ideologia. Interdiscurso. Memória. Acontecimento.
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